Histórias que vovó contava…

PRENDA MINHA…

         O campo
é verde e a grama macia, as coxilhas se perdem na distância. Os carrapichos e
rosetas não dão sossegos a meus pés infantis e descalços. No riacho de águas
cristalinas, peixes vermelhos nadam entre seixos multiformes. Um sino badala na
casa antiga de grossas paredes… Chama para o lanche da tarde. Atravesso
correndo o pomar, são muitas goiabeiras, laranjeiras, pés de peras, bergamotas,
ameixeiras, marmeleiros, frutas plantadas pelos bisavôs. Paro na soleira da
porta e flutuando adentro a sala vazia. Já não sou uma menininha, agora sou uma
moça tentando entender o mundo.
         O
retrato de casamento de vovô e vovó, numa moldura oval, amarelada pelo tempo,
observa meus passos. Na foto o casal olha para a porta de entrada como a esperar
visitas. Quem sabe algum dos filhos aparece! Qual deles atravessará o batente?
Tia Bella fugiu para longe com um mascate turco ou seria um cigano? Nunca
voltou! Embranqueceram os cabelos dos avós de tanta espera, ou foi o suicídio
de tio Anselmo, que se enforcou por amor, a causa da velhice precoce? Não
interessa! Há muito tempo meus avós partiram… Deixando um suspiro de saudade
e uma lágrima furtiva nos olhos de minha mãe. Pobre mamãe!
         Mamãe
casou mocinha, estava apaixonada e logo vieram os filhos. Fomos três! Mário,
Magda e Martha, suas joias mais preciosas, dizia. Quando completei dez anos
papai foi para a guerra. Mais uma revolta dos índios guaranis, antigos donos
destas terras. Daquela vez aliaram-se aos paraguaios e passaram por nossa
estância. Levaram os cavalos, muito gado e raptaram Magda, minha irmã mais
velha e mocinha… Triste Magda! Noiva de nosso vizinho Hilário. Jamais casou!
Nem ele, nem ela. Magda nunca voltou! Papai também não retornou de sua peleja
com os índios. Ficamos anos a sua espera! Eu, mamãe e Mário.
         Tocamos
nossas vidas. Às vezes apressados, outras vezes lentamente. No inverno nos
recolhíamos ao interior da casa. O vento Minuano, as geadas, o frio cortante e
aquele céu sempre azul na mesma paisagem solitária. Era a época de recordar, de
ouvir histórias, de chorar nossos mortos. Na primavera tudo mudava! As ovelhas,
as vacas, as porcas e éguas pareciam apaixonar-se todas de uma vez só e ao
mesmo tempo. Muitas flores, muitos risos, muito serviço para por em dia.
         Mário
casou e sua esposa não quis morar no casarão. Ela via vultos, ouvia risadas,
sentia arrepios. Dizia que uma mulher gargalhava e puxava seus cabelos. Pela
descrição, a visagem era tia Cotinha, uma irmã de mamãe que enlouqueceu quando
seu noivo a trocou por uma sirigaita da cidade grande. Mário construiu uma casa
nova, tem até banheiro no interior. Meus sobrinhos já estão mocinhos… Mamãe
se finou de saudades e meus cabelos ficaram brancos como neve, igual à geada
que cobre nossos campos no inverno. Nunca casei! Já sou tia avó. Os filhos de
meu irmão me chamam tia Marthinha. Pedem-me que lhes conte a história dos
nossos antepassados, dão muitas risadas e atrapalham meus cochilos.
         Uma
tarde eu estava sentada naquela cadeira de balanço, aquela que está ali no
canto. Olhei o retrato de casamento dos avós e levei um baita susto! Vovó me
sorria e vovô espiava para o lado de fora, demonstrando alegria. Segui seu
olhar e papai estava chegando… Papai moço novo, com seus olhos azuis e seu
sorriso mais bonito. Abraçou-me, disse que jamais se afastou de mim e que eu
era sua princesinha… Deu-me a mão e me levou a passear. Fomos até o campo
olhar as coxilhas, depois observamos os peixes vermelhos no arroio. Eu era
novamente uma menina de oito anos. Cantamos junto a “Prenda Minha”; – “ Vou me
embora vou me embora prenda minha, tenho muito o que fazer, tenho que aparar
rodeio prenda minha, nos campos do bem querer.”
         Hoje
penso que papai foi um feiticeiro. Nunca mais sentei na cadeira de balanço.
Dentro de casa sou uma velha, arrasto os pés, ando com dificuldade. Meu
sobrinho neto casou e mora aqui em casa. Quando sua mãe vem visitá-lo, aquela
que vê fantasmas, ela se arrepia, diz que estou na sala. Ela está bem
acabadinha, acho que está caducando. Há pouco tempo eu estava no campo, era uma
menina de oito anos… Ouvi o sino do lanche e corri para a casa. A casa está
vazia! Ficou a saudade nos olhos dos retratos e a presença de papai que me diz;
– “Vem! Vamos embora prenda minha. Vim te buscar para uma nova vida… Vem
prenda minha!”



Martha (1745 – 1823)



Gastão Ferreira/2012- Iguape/SP

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