O ônibus da meia-noite

Iguape tem dezenas de bairros rurais com suas inúmeras plantações de chuchu, maracujá, mandioca, banana, pitaya, jiló, quiabo, abóbora, enfim, uma diversidade de legumes e vegetais que fazem parte da culinária caiçara; as crianças estudavam de dia nas escolas rurais e muitos adultos completavam o estudo médio na cidade grande, sempre no período noturno, na época a prefeitura disponibilizou um ônibus para trazer e levar tais alunos, o famoso “ônibus da meia-noite”.

Juca do Mato, vinte e dois anos, rapaz esperto, e morador do bairro Itimirim numa sexta-feira faltou à última aula e foi passear com a mocinha Audrey Chyslaine nos jardins da orla do lagamar… Estavam ali de mãos dadas, olho no olho, no chove e não chove, quando Juca notou a aproximação do ônibus dos estudantes, o tal do “meia-noite”… Soltou a mão de Audrey, e correu até o ponto e conseguiu embarcar a tempo, mas a moça ficou para trás.

Um cheiro de carne podre infestava o interior do ônibus, Juca notou que nenhum dos passageiros eram os usuários comuns da condução… Sentada de cara amargurada, do outro lado do corredor estava Dona Zulmira… Dona Zulmira? Dona Zú morrera faz uma semana! Meu Bom Jesus…

Juca estava apavorado, saiu para o corredor do ônibus e foi espiar cara a cara, um por um dos passageiros; todos mortos, todos defuntos, e entre eles seu amigo Nestor, que morreu afogado recentemente; – “Nestor é você?”

– Juca meu amigo! Nem sabia que você desencarnou. Seja bem-vindo ao ônibus da morte.

– Ônibus da morte? Esse ônibus é o ônibus da morte?

– Sim, o próprio! Ele circula invisível no município e recolhe a alma dos falecidos, quando completa a lotação os conduz para fora do mundo físico…

– Mas Nestor, você faleceu há quase um mês…

– O problema é que temos poucos óbitos no município, então o ônibus fica rodando pelas estradas rurais de dia e de noite na cata dos falecidos, agora que você chegou ainda faltam doze mortos para completar a lotação…

– Mas Nestor, eu não morri! Subi para o ônibus por engano, achei que era o ônibus da meia-noite, a condução dos estudantes noturnos…

– Algo está errado, muito errado, este ônibus passou às onze da noite pela orla do mangue e não a meia-noite…

– Tenho certeza que passou exatamente a meia-noite…

– Não senhor! Ontem acabou o horário de verão, e talvez você não tenha se tocado… Meia-noite voltou a ser onze horas!

– É verdade! E agora o que eu faço? Será que realmente eu morri e não me dei conta…

Juca do Mato foi conversar com o motorista, era o Zé Sebinho, velho conhecido do Juca e amigão de seu pai; – “Seu Zé, por favor, pare o ônibus para eu descer… Ocorreu um engano, eu não morri!”

– Ah, é você seminino Juca! Como vai compadre Aristeu? Nem me informaram que a tua hora final havia chegado… Bem-vindo a bordo!

– Se não informaram é porque não era a minha hora…

– Nhãnhãnhã… O ônibus só para quando tem de recolher uma alma recém falecida… Vamos ver aqui no relatório… Você embarcou em que parada?

– Parada orla do mangue, porto da balsa…

– Vejamos… Vejamos… Pegar Audrey Chyslaine, mordida por uma jaracuçu as 22; 59 na orla do mangue…

– Lembro que Audrey gritou apavorada quando corri até o ponto do ônibus, então foi naquele momento que a cobra a picou…

– Tem razão, o ônibus abriu a porta para receber a Audrey, mas o afobadinho praticamente se jogou para dentro da condução… E agora? Isso nunca aconteceu antes!

– Por favor, Seu Zé Sebinho, me deixa descer!

– Não posso carregar um ser vivo dentro do ônibus dos mortos… Quando eu gritar já… Salte do ônibus… Já!

Juca do Mato saltou do ônibus, quase caiu dentro do Rio Ribeira, pulou da condução bem no início da Ponte do Mathias… Ainda estava meio zonzo quando o verdadeiro ônibus da meia-noite estacionou a sua frente…

– Juca do Mato, o que está fazendo tão longe de casa? Faltou à aula, foi isso! Entra logo, guri…

Dentro da condução estavam todos os seus colegas, todos não, faltava Audrey Chyslaine…

 

Gastão Ferreira/2021

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